Falsas Acusações e Lei Maria da Penha: Efeitos Psicológicos Profundos e o Caminho da Reconstrução

Era uma terça-feira comum. O relógio ainda não marcava sete da manhã quando o barulho insistente na porta despertou o homem. Do outro lado, vozes firmes, ordens curtas, a presença policial. Ele não sabia que, a partir daquele instante, sua vida passaria a ser definida por um único rótulo — “acusado” — e que tudo o que construíra em anos seria colocado em suspensão. A acusação era de violência doméstica. Não havia ocorrido qualquer audiência, não havia prova, mas a formalização do registro já bastava para acionar um efeito em cascata: afastamento imediato do lar, manchetes sensacionalistas e a presunção social de culpa.

A Lei Maria da Penha, marco fundamental na proteção de mulheres vítimas de violência, transformou-se, ao longo dos anos, em instrumento jurídico de enorme impacto social e protetivo. Criada para corrigir uma injustiça histórica, trouxe mecanismos urgentes e preventivos, capazes de interromper ciclos de agressão antes que fosse tarde demais. Porém, como todo instrumento poderoso, também se tornou vulnerável ao mau uso. Falsas denúncias, embora numericamente menos frequentes que as legítimas, têm um poder destrutivo singular, sobretudo quando associadas ao contexto da Lei, que prevê medidas imediatas, como afastamento do lar e restrição de contato, antes mesmo da conclusão investigativa.

Esse mecanismo emergencial, pensado para salvar vidas, pode, em casos de má-fé, deflagrar um trauma agudo e de longa duração no homem acusado injustamente. E não se trata de um abalo emocional passageiro: segundo múltiplos estudos revisados, o curso psicológico que se segue é marcado por um conjunto de fases progressivas e, muitas vezes, irreversíveis.

A primeira dessas fases é o impacto inicial, descrito por Brito (2024), Houben et al. (2024) e Schuman (1986) como um estado de “alarme e reação imediata” ou “choque e desorganização”. É quando o organismo entra em modo de sobrevivência: taquicardia, tremores, suor frio, respiração curta, boca seca. A mente, tomada por incredulidade, luta para compreender a acusação. Muitos relatam sensação de estar “fora do próprio corpo”, observando a cena de longe — um mecanismo dissociativo clássico diante de ameaças existenciais. Essa despersonalização, longe de ser apenas curiosidade clínica, é a primeira tentativa desesperada da psique de amortecer um impacto que poderia ser insuportável em estado de plena consciência.

Paralelamente, emerge um pânico visceral de prisão, acompanhado da necessidade urgente de defesa jurídica. É o momento em que começa a “vida suspensa” descrita por Cascaes (2019): tudo o que existia antes parece congelado, os projetos perdem sentido imediato, e a atenção se volta exclusivamente para a ameaça iminente. Houben (2024) reforça que essa etapa é dominada por estratégias de coping emocional — supressão de pensamentos, isolamento voluntário e evitação cognitiva — que, embora possam estabilizar momentaneamente, tendem a prolongar o sofrimento se mantidas.

Se a fase inicial é marcada pelo caos, a segunda é definida pelo silêncio. Chamaremos aqui de isolamento social e estigma, termos empregados por Brito (2024) e Campbell & Denov (2004). Logo após o choque, muitos acusados percebem que sua rede de apoio começa a se romper. Amigos e até familiares recuam, seja por medo de se envolver, seja pela dúvida silenciosa sobre a inocência. A Casa da Mulher Brasileira, citada por Brito, ao formalizar rapidamente denúncias, pode, mesmo sem intenção, amplificar essa estigmatização. Nesse período, a insônia passa a ser quase universal entre os acusados injustamente — e não se trata de noites mal dormidas ocasionais, mas de insônia grave, persistente, que compromete funções cognitivas e agrava sintomas ansiosos.

Esse afastamento social não é apenas consequência do julgamento externo, mas também de uma autocensura protetiva. Saldanha (2022) descreve como homens passam a se perceber como potenciais agressores aos olhos da sociedade, mesmo sendo inocentes, e evitam contato para não “dar motivo” a novos questionamentos. O efeito é um círculo vicioso: o isolamento alimenta a solidão afetiva, que, por sua vez, intensifica sintomas depressivos.

À medida que semanas e meses se passam, entra-se na terceira etapa: o desgaste emocional prolongado. Aqui, os relatos convergem para o desenvolvimento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), acompanhado, em grande parte dos casos, por depressão maior e ansiedade generalizada. É o que Brooks & Greenberg (2021) descrevem como a transição para “síndromes psiquiátricas estruturadas”: flashbacks vívidos de interrogatórios, audiências ou da própria abordagem policial; pesadelos recorrentes com perseguição; evitação de locais ou pessoas associadas ao processo; irritabilidade constante e respostas desproporcionais a estímulos mínimos.

Essa é também a fase da “hostilidade defensiva” identificada por Brooks & Greenberg, em que a raiva contra o acusador, contra o sistema judicial e contra si mesmo se torna crônica. Há uma desconfiança generalizada, um “radar social” hiperfuncional (Grounds & Kauffman, 2003), que detecta ameaças e interpreta interações neutras como suspeitas. É uma adaptação ao ambiente percebido como hostil, mas que, paradoxalmente, mantém o indivíduo preso em um estado de alerta perpétuo.

Cascaes (2019) acrescenta um componente de especial gravidade nesta etapa: o fenômeno da “prisão subjetiva”. Mesmo quando não há encarceramento real, o acusado internaliza o papel de preso — horários restritos, evitação de espaços públicos, comportamentos hipervigilantes — como se ainda estivesse sob vigilância. Esse estado mental pode perdurar por anos, mesmo após absolvição.

O desgaste prolongado também se manifesta fisicamente: dores musculares crônicas, cefaleias tensionais, distúrbios gastrointestinais. Schuman (1986) e Gudjonsson & Sigurdsson (2010) mostram que esses sintomas somáticos não são meros reflexos de ansiedade, mas parte de um quadro psicofisiológico crônico em que o corpo permanece mobilizado para a defesa.

Ao lado desses sintomas, a identidade começa a se fragmentar. Pacheco (2024) relata que, em contextos de falsas acusações no âmbito da alienação parental, muitos homens vivenciam a perda do papel paterno como uma “morte social”. Essa ruptura no sentido de si mesmo é comparável, segundo Grounds (2004), ao que sobreviventes de tortura relatam: uma quebra da “segurança ontológica”, a crença de que o mundo é previsível e confiável. Uma vez quebrada, essa sensação raramente é plenamente restaurada.

Nesse ponto do processo, mesmo sem condenação formal, a vida já foi profundamente alterada. As relações pessoais estão desgastadas, a reputação corroída e a saúde mental comprometida. No entanto, como veremos a seguir, esse não é o ponto final: a cronificação do trauma e as fases residuais posteriores à resolução judicial podem ser tão ou mais debilitantes que o impacto inicial.

Quando o processo judicial se arrasta ou quando, mesmo após a absolvição, os efeitos sociais e emocionais não se dissipam, o que se instala é a fase da cronificação do trauma. Grounds (2004) descreve esse estado como uma “prisão vitalícia invisível”: a liberdade formal é retomada, mas a liberdade psíquica permanece restrita. É aqui que se manifestam com força os sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo (TEPT-C), caracterizado não apenas por revivescências e hipervigilância, mas também por alterações persistentes na autoimagem, dificuldade em manter vínculos afetivos e uma sensação generalizada de desesperança.

Essa cronificação é alimentada pelo que podemos chamar de “camadas do trauma” — termo que, embora não apareça formalmente nos diagnósticos, sintetiza bem o acúmulo descrito nos estudos. O primeiro trauma é o impacto inicial da acusação. O segundo é a experiência judicial prolongada, com cada audiência ou despacho funcionando como reativador do medo original. O terceiro é a reação social e familiar, muitas vezes marcada pelo afastamento ou julgamento. O quarto é a perda de papéis identitários (como trabalhador estável, pai presente ou parceiro). Cada camada não substitui a anterior, mas a recobre, criando um bloco rígido e pesado de memória emocional negativa.

Brito (2024) e Pacheco (2024) descrevem como esse processo é particularmente devastador quando envolve filhos. Em casos nos quais a falsa denúncia é usada como instrumento de alienação parental, a impossibilidade de convivência e a deterioração do vínculo paterno geram um luto ambíguo — o filho está vivo, mas inacessível. Estudos de Campbell & Denov (2004) indicam que esse tipo de luto não resolvido está fortemente associado a depressão crônica e risco aumentado de ideação suicida.

No âmbito conjugal e familiar, o impacto se expande para além do acusado. Parceiros(as) atuais ou futuros(as) enfrentam a pressão social de se relacionar com alguém “acusado de violência”, mesmo quando inocentado. Filhos, mesmo pequenos, percebem a tensão, internalizando sentimentos de insegurança e vergonha herdada. Cascaes (2019) alerta para o risco de perpetuação intergeracional do estigma, com crianças desenvolvendo ansiedade social e dificuldades de confiar em figuras de autoridade.

Do ponto de vista funcional, a reinserção profissional é outro campo minado. Grounds & Kauffman (2003) relatam que muitos absolvidos enfrentam desemprego prolongado, não por falta de competência, mas porque referências profissionais foram contaminadas pela acusação. Em profissões que exigem checagem de antecedentes ou que dependem de reputação ilibada, a mera lembrança pública do caso, ainda que encerrado, pode ser suficiente para bloquear oportunidades.

Chegamos, então, ao momento das estratégias de enfrentamento — o coping. Houben et al. (2024) categorizaram essas respostas em três dimensões principais:

  1. Coping emocional – voltado a reduzir o desconforto interno, incluindo supressão de pensamentos, evitação de gatilhos e busca de conforto em hábitos automedicativos (como álcool ou sedativos). Embora proporcione alívio imediato, esse tipo de coping pode se tornar prejudicial, favorecendo dependências e mantendo a evitação.
  2. Coping de confronto – caracterizado por ações diretas para reverter a situação ou buscar justiça, como produção de provas, ações judiciais contra o acusador ou engajamento em movimentos de conscientização. Pode restaurar algum senso de controle, mas, se prolongado, mantém o indivíduo exposto continuamente a lembranças do trauma.
  3. Coping social – busca ativa de apoio emocional e material em amigos, familiares ou grupos de suporte. É o fator mais protetor contra depressão e ansiedade, mas depende de a rede de apoio permanecer disponível, o que nem sempre acontece diante do estigma.

O problema surge quando o coping emocional se torna predominante e o social se fragiliza. Nesse cenário, a solidão se intensifica e a recuperação se torna improvável sem intervenção terapêutica especializada.

As comparações clínicas ajudam a dimensionar a gravidade desse quadro. Grounds (2004) e Saldanha (2022) apontam paralelos consistentes entre homens acusados injustamente de violência doméstica e veteranos de guerra ou sobreviventes de tortura. Em todos esses casos, há:

  • perda do senso de segurança ontológica;
  • hipervigilância crônica;
  • alterações persistentes na identidade;
  • dificuldade em confiar no mundo e nos outros.

A diferença é que, no caso das falsas denúncias, o agressor percebido é o próprio sistema que deveria proteger — uma experiência que reforça sentimentos de traição institucional e agrava o isolamento.

A psiquiatria clínica, conforme o Clínica Psiquiátrica – Guia Prático (FMUSP, 2021), recomenda, para casos de TEPT e TEPT-C, intervenções combinadas: psicoterapia focada no trauma (como EMDR ou Terapia Cognitivo-Comportamental de exposição prolongada), farmacoterapia quando indicada (antidepressivos ISRS, estabilizadores de humor em casos selecionados), e programas de reabilitação psicossocial. Contudo, o sucesso do tratamento está diretamente ligado à aceitação do paciente de que precisa de ajuda — e essa aceitação, no contexto de falsa acusação, pode ser dificultada pela resistência em se ver como “vítima”.

É nesse ponto que entra o papel essencial de clínicas psiquiátricas com abordagem empática e não julgadora. Profissionais treinados para reconhecer o viés social contra o acusado e oferecer um espaço seguro podem quebrar o ciclo de retraimento. Mais que tratar sintomas, é preciso reconstruir a narrativa pessoal do paciente, resgatando papéis identitários e reconectando-o à vida social e familiar.

E, por mais que o processo judicial possa chegar ao fim, para muitos, a verdadeira absolvição só acontece quando a voz interna — sufocada por meses ou anos de medo, vergonha e raiva — consegue dizer com convicção: “eu não sou o que disseram que sou”.

No próximo passo, a jornada desse paciente inclui não apenas a estabilização clínica, mas também a reintegração plena: retomar atividades que antes eram fonte de prazer, reconectar-se a vínculos positivos e, quando possível, transformar a experiência em motor de advocacia ou conscientização. É um caminho longo, que exige perseverança e suporte especializado, mas que pode conduzir à reconstrução de uma vida que, por um tempo, parecia perdida para sempre.

As falsas denúncias, especialmente quando associadas à Lei Maria da Penha, deixam marcas muito mais profundas do que se imagina. Não se trata apenas de enfrentar um processo judicial — trata-se de sobreviver a um terremoto emocional que abala identidade, relacionamentos e perspectivas de futuro. A cronificação de sintomas como insônia, ansiedade, hipervigilância e depressão é frequente, e o retorno à vida anterior raramente acontece sem um acompanhamento especializado.

Se você — ou alguém próximo — foi vítima de uma acusação injusta e sente que carrega esse peso todos os dias, saiba que existe tratamento, existe suporte, e existe a possibilidade real de reconstruir não apenas a rotina, mas também a confiança em si mesmo e no mundo. A recuperação começa quando você decide não enfrentar essa batalha sozinho.

Na Clínica Nikolas Heine oferecemos atendimento psiquiátrico e psicológico especializado, com abordagem baseada em evidências e sensibilidade às especificidades de quem passou por uma injustiça tão profunda. Nossa equipe entende que você não é a acusação que sofreu — e que seu valor não pode ser definido por um rótulo falso.

Não permita que o trauma dite o rumo da sua história. Entre em contato conosco e dê o primeiro passo para retomar sua vida com dignidade, saúde emocional e esperança renovada.

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